. Flor de Lótus .
Flor de Lótus
que não conhecia a geografia dos outros países, ou mesmo da
própria China, mandou que seu ministro de relações exteriores
viajasse por todo o Celeste Império, até encontrar o berço do
Rio Amarelo.
E foi assim que o ministro Chang Ch’ien embarcou num
veleiro de sândalo e velas de seda, e saiu viajando de norte a sul,
procurando satisfazer a curiosidade do seu soberano.
E o ministro viajou durante quinze anos. Visitou muitos países,
e trouxe inúmeras preciosidades que ninguém conhecia na
China. Nestas andanças foi capturado pelos hunos, uma tribo
bárbara que vivia no norte da China, e somente três anos depois
conseguiu fugir da prisão.
Com a ajuda dos deuses, conseguiu outro barco, não tão
bonito como o outro, mas sólido e firme. Os camponeses, que
reconheceram nele o enviado do rei, encheram-lhe o barco de
arroz, de soja e frutas secas. E o ministro Chang continuou viajando,
sem contudo encontrar a nascente do Rio Amarelo.
Finalmente ele decidiu que a única coisa a fazer era viajar
rumo ao noroeste. E foi subindo o rio, foi subindo, sem nada encontrar.
Era um rio longo que banhava toda a China. E durante
muitos meses o ministro Chang velejou, cumprindo as ordens
do seu rei, enquanto meditava nas quatro nobres Verdades.
O tempo rolou como o torno de um oleiro. E o Ministro
pensava na sua solidão:
“Sem algum tipo de amor, o homem murcha como uma uva
numa videira seca”.
Mas ele acreditava na união do ser humano com o Grande
Todo, e esperava pacientemente encontrar a nascente do Rio
Amarelo.
Enquanto viajava, o Ministro continuava imerso nas suas
meditações. Era uma mente brilhante, alcançando as últimas
fronteiras do pensamento.
Certa noite, ancorou o barco na beira do rio e adormeceu.
Foi então que começou uma grande tempestade. Seu barco foi
sacudido violentamente
pelos ventos, e o Ministro Chang ficou
sem saber o que fazer.
— Cada um de nós é um instante do Eterno — murmurou
ele — e se eu tiver que morrer agora, que os deuses me estendam
suas mãos benditas e me levem ao Mosteiro da Radiosa
Harmonia, muito além das grandes nuvens...
E foi então que os ventos diminuíram e a tempestade passou
completamente.
Era a sétima noite do sétimo mês do ano da Serpente de
Fogo.
E ele pensou, “estas datas chinesas, intocadas pelo tempo,
hão de permanecer, mesmo depois que se acabem todas as dinastias.
Simplesmente porque elas são plenas de infinitude”...
A noite acabou e veio um sol luminoso como um gongo de
ouro, iluminando tudo. O Ministro Chang, era um homem forte,
esguio como um bambu novo; tinha desperdiçado quarenta primaveras,
mas no íntimo sentia-se muito jovem. Naquela manhã
radiosa, ele esticou-se todo num gostoso espreguiçar. Depois,
lentamente, começou a fazer em si mesmo a antiga massagem
chinesa chamada Tui Na. Amarrou o barco numa árvore perto
da margem do rio. Abriu a arca de sândalo que continha suas
roupas e trocou a túnica de seda vermelha, toda molhada, por
um confortável conjunto de algodão azul que comprara de um
camponês na aldeia da Andorinha Migrante.
Estava calçando os sapatos de lã com sola de couro de búfalo,
quando ouviu uma doce voz feminina que em algum lugar
ali perto cantava:
corpórea se manifestasse.
Do seio das nebulosas
vi brotar a criação multiforme.
Pensei formas que foram depois
humanizadas.
os deuses destruíram a ponte
do arco-íris por onde os
Filhos dos Imortais desciam
em busca das filhas dos homens,
contemplei as estrelas caírem
como chuva, sobre este planeta
obscuro...
mais jovem que as alvoradas.
Respiro o hálito de todos os mundos
e sinto-me eterna como o Grande Ser,
porque dele sou a
emanação suprema!
— Quem será que está cantando assim?
Levantou-se e foi andando pelas margens do rio. Viu pessegueiros
floridos muito bonitos. Não viu nenhum animal, exceto
um grande número de andorinhas, que voavam pouco acima das
águas do rio. Afinal, no alto de uma colina, Chang viu um jovem
pastor, apoiado num cajado de sete nós. Perto dele, pastando
tranqüilamente, estava um bando de búfalos. O jovem pastor
parecia alheio a tudo e olhava em direção das Cinco Montanhas
Sagradas.
Chang olhou também e viu uma mulher vestida com uma
resplandecente túnica rosada. Diante dela havia um tear onde
ela tecia fios de seda colorida.
O Ministro voltou para o barco, atravessou o rio e foi andando
em direção à mulher. À medida que se aproximava, viu
que ela era muito jovem. Tinha um corpo elegante como um talo
de um lótus e um rosto meigo e delicado, de pele fina e branca
como a flor da amendoeira.
Ela parecia indiferente a tudo. Enquanto fiava, com seus
dedos ágeis e finos como brotos de bambu esculpidos no marfim,
ela cantou brevemente com voz doce e calma:
tristeza minha, neste dia quieto,
cinturado de névoa e de pranto.
Façamos versos já que tu vieste
com esta doçura de cantar chorando.
vê como ferve o mel da primavera
naquele velho caldeirão dos astros.
Tenho os olhos inchados de esperança,
para chorar um grande amor distante,
tristeza minha luminosa e cálida,
doce visitante desta hora plena,
inquieta amiga dos meus jovens anos,
quem te chamou aqui no meu refúgio?
como uma pomba de cristal sem rumo?
Tristeza minha luminosa e cálida,
tristeza minha neste dia quieto...
— Conheço todas as Casas de Chá de muitas cidades chinesas,
mas não existe lá cantora nenhuma que cante como você!
A jovem o examinou, e ficou satisfeita com a agradável
aparência do Ministro Chang.
— Qual é a sua idade e o que veio fazer aqui?
— Desperdicei quarenta anos da minha vida — disse
Chang — e estou aqui em busca das nascentes do Rio Amarelo,
a mando do Imperador Wu Ti. E quantas são as suas próprias
primaveras?
— Tenho quinze anos — falou a jovem. E meu nome é Flor
de Lótus.
Ele inclinou-se profundamente numa respeitosa saudação,
e ela respondeu: “Wan Pu”, Dez Mil Felicidades.
Podia dizer-me onde estou, e onde posso encontrar a próxima
cidade? Perdi meu caminho por causa da tempestade.
Ela sorriu e respondeu:
— Se eu lhe dissesse o senhor não acreditaria, mas não
posso dizer-
lhe. Mas leve esta minha lançadeira, e volte pelo
mesmo caminho de onde veio. Os senhores do vento vão ajudá-lo
a chegar à capital da China. Quando chegar no palácio do rei,
mostre esta minha lançadeira ao astrônomo da corte. Ele é um
sábio que conhece o segredo das estrelas. Conte-
lhe exatamente
o dia e a hora em que recebeu este meu presente, e talvez ele
possa lhe explicar quem sou eu...
Muito admirado, o Ministro Chang agradeceu e fez o que
ela disse. Navegou rio abaixo, com os ventos enfunando as velas
e conduzindo o barco na direção de Pequim, muito mais depressa
do que ele esperava. Assim que chegou no palácio da Cidade
Proibida, mesmo antes de procurar o rei, foi até a Torre de Jade,
onde morava o astrônomo da corte.
Contou-lhe tudo e mostrou-lhe a lançadeira de ouro. O velho
astrônomo Lang Su, gritou excitado:
— Ah! Vossa honorável pessoa foi aquela estrela errante
que eu observei no céu, no sétimo dia do sétimo mês!
— Estrela errante? — perguntou Chang Ch’ien admirado.
Como posso eu ser uma estrela?
— Eu lhe contarei toda a história — respondeu o astrônomo
emocionado. — Alguns anos atrás, a Celeste Fiandeira, que
é a filha mais nova do Imperador do Céu, apaixonou-se por um
jovem pastor de búfalos, e era tanto o amor que sentiam um pelo
outro, que o Imperador do Céu deixou que eles se casassem.
Eles ficaram muito felizes. Mas tão felizes que esqueceram
seus deveres; o pastor deixou que os búfalos se perdessem e
a formosa Celeste Fiandeira esqueceu de tecer as maravilhosas
roupas dos deuses. O Imperador do Céu ficou tão zangado
quando soube disso, que separou os dois apaixonados. Colocou
o pastor no outro lado da Via Láctea, o grande rio que corre
pelo meio do céu. E desde então os dois esposos podiam se ver
através
do rio, mas não podiam se encontrar nunca. Exceto na
sétima noite do sétimo mês. Somente nesta noite o rei permitia
que os dois se amassem no jogo da lua e dos ventos.
— Mas como eles podem se encontrar com aquele grosso
rio entre eles? — indagou Chang Ch’ien.
— Nesta noite mágica, todas as andorinhas da China voam
para o céu, em direção do rio da Via Láctea. E com suas asas delicadas
formam uma ponte por cima do rio. Através desta ponte
alada, a jovem Flor de Lótus, a Celeste Fiandeira, vai encontrar
seu marido. É por causa disso que ninguém vê nenhuma andorinha
na terra, na sétima noite do sétimo mês.
— É verdade — concordou o Ministro, pensativo.
— Este ano, na sétima noite do sétimo mês — continuou o
astrônomo — eu estava no Terraço da Lua contemplando o céu
com minhas lentes de cristal radiosas, para observar o encontro
do pastor e da Celeste Fiandeira, quando apareceu entre as duas
estrelas, que nós, aqui na terra, chamamos de Vega e Altair, uma
outra estrela, pequenina e brilhante. Pelo que vossa nobre e honorável
pessoa me disse, o senhor deve ter sido aquela estrela.
— Mas, se assim foi — retrucou Chang Ch’ien — então eu
estava navegando o rio da Via Láctea, e o Rio Amarelo nasce
neste rio do céu!
— Sim. — respondeu o astrônomo — Muitos sábios sempre
acreditaram que a Via Láctea flui do céu para a terra e se
transforma no Rio Amarelo, o nosso querido rio Yang Tsé. No
céu ele é claro e brilhante; na terra ele é amarelo, por causa da
terra amarela da China. Mas é o mesmo rio.
O Ministro saiu do Terraço da Lua e foi à procura do Im
perador Wu Ti, na Sala das Audiências Cristalinas. Contou ao
soberano toda a sua aventura e deu-lhe de presente a lançadeira
de ouro, como prova de que sua história era verdadeira.
O Imperador ficou maravilhado.
— Até que enfim — exclamou — encontramos a nascente
do Rio Amarelo! E agora sabemos que é impossível viajar através
dele, da Terra até o Céu.
E o Ministro, que era um filósofo, retrucou:
— Sim, Majestade. Na vida nada existe de fantástico. Tudo
o que adquire um caráter prodigioso descansa sobre uma base
concreta e perfeitamente determinada. É maravilhoso pensar
neste amor imortal de Flor de Lótus e do pastor de búfalos,
porque o amor é a mais bela fragilidade da mente... — concluiu
soltando um longo suspiro.