23.10.08

. Flor de Lótus .


Flor de Lótus
Chiang Sing, que foi me apresentada (por acaso?) num sebo através de livros de yoga para mulheres, é jornalista brasileira e tem uma linda história de vida.
Sobre ela, diz Guilherme de Almeida, da ABL:
"Chiang Sing-alma chinesa em moldura brasileira-atravessou o tempo e o espaço para vir florescer em trópicos antípodas, conseguindo absorver e transmitir todo o requinte da poesia do Celeste Império..."
Partilho com você toda a sabedoria, toda poesia embutidas neste conto que só poderia ser escrito por uma alma oriental!
Do livro-Lendas do Celeste Império-Chiang Sing:
Tudo começou porque o imperador Wu Ti, da Dinastia Han,
que não conhecia a geografia dos outros países, ou mesmo da
própria China, mandou que seu ministro de relações exteriores
viajasse por todo o Celeste Império, até encontrar o berço do
Rio Amarelo.
E foi assim que o ministro Chang Ch’ien embarcou num
veleiro de sândalo e velas de seda, e saiu viajando de norte a sul,
procurando satisfazer a curiosidade do seu soberano.
E o ministro viajou durante quinze anos. Visitou muitos países,
e trouxe inúmeras preciosidades que ninguém conhecia na
China. Nestas andanças foi capturado pelos hunos, uma tribo
bárbara que vivia no norte da China, e somente três anos depois
conseguiu fugir da prisão.
Com a ajuda dos deuses, conseguiu outro barco, não tão
bonito como o outro, mas sólido e firme. Os camponeses, que
reconheceram nele o enviado do rei, encheram-lhe o barco de
arroz, de soja e frutas secas. E o ministro Chang continuou viajando,
sem contudo encontrar a nascente do Rio Amarelo.
Finalmente ele decidiu que a única coisa a fazer era viajar
rumo ao noroeste. E foi subindo o rio, foi subindo, sem nada encontrar.
Era um rio longo que banhava toda a China. E durante
muitos meses o ministro Chang velejou, cumprindo as ordens
do seu rei, enquanto meditava nas quatro nobres Verdades.
O tempo rolou como o torno de um oleiro. E o Ministro
pensava na sua solidão:
“Sem algum tipo de amor, o homem murcha como uma uva
numa videira seca”.
Mas ele acreditava na união do ser humano com o Grande
Todo, e esperava pacientemente encontrar a nascente do Rio
Amarelo.
Enquanto viajava, o Ministro continuava imerso nas suas
meditações. Era uma mente brilhante, alcançando as últimas
fronteiras do pensamento.
Certa noite, ancorou o barco na beira do rio e adormeceu.
Foi então que começou uma grande tempestade. Seu barco foi
sacudido violentamente
pelos ventos, e o Ministro Chang ficou
sem saber o que fazer.
— Cada um de nós é um instante do Eterno — murmurou
ele — e se eu tiver que morrer agora, que os deuses me estendam
suas mãos benditas e me levem ao Mosteiro da Radiosa
Harmonia, muito além das grandes nuvens...
E foi então que os ventos diminuíram e a tempestade passou
completamente.
Era a sétima noite do sétimo mês do ano da Serpente de
Fogo.
E ele pensou, “estas datas chinesas, intocadas pelo tempo,
hão de permanecer, mesmo depois que se acabem todas as dinastias.
Simplesmente porque elas são plenas de infinitude”...
A noite acabou e veio um sol luminoso como um gongo de
ouro, iluminando tudo. O Ministro Chang, era um homem forte,
esguio como um bambu novo; tinha desperdiçado quarenta primaveras,
mas no íntimo sentia-se muito jovem. Naquela manhã
radiosa, ele esticou-se todo num gostoso espreguiçar. Depois,
lentamente, começou a fazer em si mesmo a antiga massagem
chinesa chamada Tui Na. Amarrou o barco numa árvore perto
da margem do rio. Abriu a arca de sândalo que continha suas
roupas e trocou a túnica de seda vermelha, toda molhada, por
um confortável conjunto de algodão azul que comprara de um
camponês na aldeia da Andorinha Migrante.
Estava calçando os sapatos de lã com sola de couro de búfalo,
quando ouviu uma doce voz feminina que em algum lugar
ali perto cantava:
Nasci antes que nenhuma forma
corpórea se manifestasse.
Do seio das nebulosas
vi brotar a criação multiforme.
Pensei formas que foram depois
humanizadas.
Quando no início dos tempos
os deuses destruíram a ponte
do arco-íris por onde os
Filhos dos Imortais desciam
em busca das filhas dos homens,
contemplei as estrelas caírem
como chuva, sobre este planeta
obscuro...
Sou mais velha que o Tempo e
mais jovem que as alvoradas.
Respiro o hálito de todos os mundos
e sinto-me eterna como o Grande Ser,
porque dele sou a
emanação suprema!
— É uma canção cósmica! — murmurou o Ministro, admirado.
— Quem será que está cantando assim?
Levantou-se e foi andando pelas margens do rio. Viu pessegueiros
floridos muito bonitos. Não viu nenhum animal, exceto
um grande número de andorinhas, que voavam pouco acima das
águas do rio. Afinal, no alto de uma colina, Chang viu um jovem
pastor, apoiado num cajado de sete nós. Perto dele, pastando
tranqüilamente, estava um bando de búfalos. O jovem pastor
parecia alheio a tudo e olhava em direção das Cinco Montanhas
Sagradas.
Chang olhou também e viu uma mulher vestida com uma
resplandecente túnica rosada. Diante dela havia um tear onde
ela tecia fios de seda colorida.
O Ministro voltou para o barco, atravessou o rio e foi andando
em direção à mulher. À medida que se aproximava, viu
que ela era muito jovem. Tinha um corpo elegante como um talo
de um lótus e um rosto meigo e delicado, de pele fina e branca
como a flor da amendoeira.
Ela parecia indiferente a tudo. Enquanto fiava, com seus
dedos ágeis e finos como brotos de bambu esculpidos no marfim,
ela cantou brevemente com voz doce e calma:
Tristeza minha luminosa e cálida,
tristeza minha, neste dia quieto,
cinturado de névoa e de pranto.
Façamos versos já que tu vieste
com esta doçura de cantar chorando.
E nesta alta solidão delgada,
vê como ferve o mel da primavera
naquele velho caldeirão dos astros.
Tenho os olhos inchados de esperança,
para chorar um grande amor distante,
tristeza minha luminosa e cálida,
doce visitante desta hora plena,
inquieta amiga dos meus jovens anos,
quem te chamou aqui no meu refúgio?
Por que voltas agora, em minha vida,
como uma pomba de cristal sem rumo?
Tristeza minha luminosa e cálida,
tristeza minha neste dia quieto...
O Ministro Chang não conseguiu controlar seu entusiasmo!
— Conheço todas as Casas de Chá de muitas cidades chinesas,
mas não existe lá cantora nenhuma que cante como você!
A jovem o examinou, e ficou satisfeita com a agradável
aparência do Ministro Chang.
— Qual é a sua idade e o que veio fazer aqui?
— Desperdicei quarenta anos da minha vida — disse
Chang — e estou aqui em busca das nascentes do Rio Amarelo,
a mando do Imperador Wu Ti. E quantas são as suas próprias
primaveras?
— Tenho quinze anos — falou a jovem. E meu nome é Flor
de Lótus.
Ele inclinou-se profundamente numa respeitosa saudação,
e ela respondeu: “Wan Pu”, Dez Mil Felicidades.
Podia dizer-me onde estou, e onde posso encontrar a próxima
cidade? Perdi meu caminho por causa da tempestade.
Ela sorriu e respondeu:
— Se eu lhe dissesse o senhor não acreditaria, mas não
posso dizer-
lhe. Mas leve esta minha lançadeira, e volte pelo
mesmo caminho de onde veio. Os senhores do vento vão ajudá-lo
a chegar à capital da China. Quando chegar no palácio do rei,
mostre esta minha lançadeira ao astrônomo da corte. Ele é um
sábio que conhece o segredo das estrelas. Conte-
lhe exatamente
o dia e a hora em que recebeu este meu presente, e talvez ele
possa lhe explicar quem sou eu...
Muito admirado, o Ministro Chang agradeceu e fez o que
ela disse. Navegou rio abaixo, com os ventos enfunando as velas
e conduzindo o barco na direção de Pequim, muito mais depressa
do que ele esperava. Assim que chegou no palácio da Cidade
Proibida, mesmo antes de procurar o rei, foi até a Torre de Jade,
onde morava o astrônomo da corte.
Contou-lhe tudo e mostrou-lhe a lançadeira de ouro. O velho
astrônomo Lang Su, gritou excitado:
— Ah! Vossa honorável pessoa foi aquela estrela errante
que eu observei no céu, no sétimo dia do sétimo mês!
— Estrela errante? — perguntou Chang Ch’ien admirado.
Como posso eu ser uma estrela?
— Eu lhe contarei toda a história — respondeu o astrônomo
emocionado. — Alguns anos atrás, a Celeste Fiandeira, que
é a filha mais nova do Imperador do Céu, apaixonou-se por um
jovem pastor de búfalos, e era tanto o amor que sentiam um pelo
outro, que o Imperador do Céu deixou que eles se casassem.
Eles ficaram muito felizes. Mas tão felizes que esqueceram
seus deveres; o pastor deixou que os búfalos se perdessem e
a formosa Celeste Fiandeira esqueceu de tecer as maravilhosas
roupas dos deuses. O Imperador do Céu ficou tão zangado
quando soube disso, que separou os dois apaixonados. Colocou
o pastor no outro lado da Via Láctea, o grande rio que corre
pelo meio do céu. E desde então os dois esposos podiam se ver
através
do rio, mas não podiam se encontrar nunca. Exceto na
sétima noite do sétimo mês. Somente nesta noite o rei permitia
que os dois se amassem no jogo da lua e dos ventos.
— Mas como eles podem se encontrar com aquele grosso
rio entre eles? — indagou Chang Ch’ien.
— Nesta noite mágica, todas as andorinhas da China voam
para o céu, em direção do rio da Via Láctea. E com suas asas delicadas
formam uma ponte por cima do rio. Através desta ponte
alada, a jovem Flor de Lótus, a Celeste Fiandeira, vai encontrar
seu marido. É por causa disso que ninguém vê nenhuma andorinha
na terra, na sétima noite do sétimo mês.
— É verdade — concordou o Ministro, pensativo.
— Este ano, na sétima noite do sétimo mês — continuou o
astrônomo — eu estava no Terraço da Lua contemplando o céu
com minhas lentes de cristal radiosas, para observar o encontro
do pastor e da Celeste Fiandeira, quando apareceu entre as duas
estrelas, que nós, aqui na terra, chamamos de Vega e Altair, uma
outra estrela, pequenina e brilhante. Pelo que vossa nobre e honorável
pessoa me disse, o senhor deve ter sido aquela estrela.
— Mas, se assim foi — retrucou Chang Ch’ien — então eu
estava navegando o rio da Via Láctea, e o Rio Amarelo nasce
neste rio do céu!
— Sim. — respondeu o astrônomo — Muitos sábios sempre
acreditaram que a Via Láctea flui do céu para a terra e se
transforma no Rio Amarelo, o nosso querido rio Yang Tsé. No
céu ele é claro e brilhante; na terra ele é amarelo, por causa da
terra amarela da China. Mas é o mesmo rio.
O Ministro saiu do Terraço da Lua e foi à procura do Im
perador Wu Ti, na Sala das Audiências Cristalinas. Contou ao
soberano toda a sua aventura e deu-lhe de presente a lançadeira
de ouro, como prova de que sua história era verdadeira.
O Imperador ficou maravilhado.
— Até que enfim — exclamou — encontramos a nascente
do Rio Amarelo! E agora sabemos que é impossível viajar através
dele, da Terra até o Céu.
E o Ministro, que era um filósofo, retrucou:
— Sim, Majestade. Na vida nada existe de fantástico. Tudo
o que adquire um caráter prodigioso descansa sobre uma base
concreta e perfeitamente determinada. É maravilhoso pensar
neste amor imortal de Flor de Lótus e do pastor de búfalos,
porque o amor é a mais bela fragilidade da mente... — concluiu
soltando um longo suspiro.

14.10.08

. luz e flores!

"...e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz." (Cecília Meireles)

...meus gerânios estão florindo, é primavera!!!
...dias ensolarados e noites amenas, que delícia, é primavera!

...a Deusa dos poetas chega com os cabelos longos ou curtíssimos; sempre com nuances quentes, como o dourado ou o acobreado; sempre em luzes, reflexos finíssimos ou balayages. Na maquiagem, cores fortes, como convém à estação das flores! Com seus vestidos bordados de flores, e claro, alimentação saudável, muita água e cabelos hidratados, preparados para o sol do verão!

. Primavera .

Partilho com você este texto mágico de Cecília Meireles!

Primavera

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega. Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores. Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende. Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol. Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz. Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação. Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou. Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor. Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.

13.10.08

. Ave Maria!

Mãezinha do céu
eu não sei rezar
eu só sei dizer
quero te amar!

Ave, cheia de graça, o Senhor é convosco! Assim saudou Isabel à sua prima Maria, que estava grávida de Jesus, nos diz a Sagrada Escritura. Maria responde com aquelas palavras lindíssimas do Magnificat: "A minh'alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus, meu salvador. Ele olhou para a humildade desta serva e doravante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada! ...Depõe do trono os poderosos e exalta os humildes..."

Ave Maria, mãe de Jesus
o tempo passa, não volta mais,
tenho saudade daquele tempo,
que eu lhe chamava de minha mãe...

Da minha avó Virgínia aprendi a fazer o sinal da cruz. Da minha avó Levina aprendi o gosto pelas romarias. Da minha mãe aprendi a cantar louvores a Jesus e Nossa Senhora.

De meus pais aprendi a rezar o terço, que rezávamos todos os dias, com a família reunida!

Meu pai, Congregado Mariano começava suas cartas com "Salve Maria!"

Neste dia especial quero saudar neste blog a religiosidade popular tão intensa e forte em nosso país, agradecer aos meus antepassados pela fé que carrego ainda hoje e pedir, como nos velhos tempos, à Mãe Maria em todas as suas manifestações, que nos abençoe e nos guarde, nos dando saúde e alegria.

À "Mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça, uma coroa com 12 estrelas", peçamos a paz e a harmonia para o Brasil, para os brasileiros e para todo o cosmos, além de pedir muito juízo aos nossos governantes.

Com minha mãe, meus irmãos e meu pai, que está com Deus e Nossa Senhora, cantemos:
"Dai-nos a bênção,
oh! mãe querida,
Nossa Senhora,
Aparecida"!!!

. eleições .

Ainda sobre as eleições neste domingo de sol rodeada de amigos:

...apesar dos acordos, conchavos e todo toma-lá-dá-cá que compõe este terreno lamascento, insisto na esperança neste momento em que temos uma nova configuração mundial que a crise financeira já proporcionou. No que vai dar só os deuses sabem. Quanto a mim, acredito na sabedoria oriental que diz: "quando o caos se instala, uma energia poderosa se levanta e o velho dá lugar ao novo"...
Me lembrei também da frase de Dante Aliguieri escrita no portal do inferno: "Perdei toda a esperança, vós que entrais".

12.10.08

. alguma poesia...

nesta ressaca pela pseudo-democracia imbutida nas eleições, nada melhor que um belo domingo ao lado de amigos queridos (Gegê, Tere, Marga e o eterno Joãozinho, amigo de todas as vidas e todas as horas)... e muita poesia!


O Olhar

Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava sua vida.
(com este poema, Manoel de Barros nos remeteu a Benjamin Boff, amigo querido presente em pensamento)

Relógio

As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão.
(Oswald de Andrade)


Se cada dia cai

Se cada dia cai
dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
(Pablo Neruda)


Exausto

Eu quero uma licença para dormir,
perdão para descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
(Adélia Prado)

1.10.08

. Uma mulher revolucionária .

Escrito por Frei Betto
09-Set-2008

Estive em Bananeiras (PB); preguei o retiro das monjas carmelitas descalças, 19 mulheres, quase todas jovens, que vivem enclausuradas. É admirável pensar que as sementes dessa comunidade nordestina foram semeadas, há quatro séculos e meio, na Espanha, por Teresa de Jesus.

Filha de uma família burguesa, Teresa nasceu em Ávila, em 1515. Ingressou no mosteiro aos 20 anos, mas seu caso de amor com Deus só se revelou uma grande paixão nove anos depois, em 1544. Sentia-se arrebatada pela experiência mística.

Num momento histórico em que o cartesianismo cindia a unidade entre espiritualidade e teologia, e a Reforma protestante sobrepunha a experiência de fé à doutrina da autoridade eclesiástica, Teresa tornou-se suspeita aos olhos da Inquisição.

Entre 1558-1560, seis teólogos a mantiveram sob observação, prontos a desmascarar o demônio que estaria por trás da espiritualidade dela...

O que Teresa experimentava não eram visões, e sim a certeza da presença do Amado em seu coração: "Esta grande graça é de Deus, e muito preze a alma a quem foi dada, porque é muito intensa oração, mas não é visão. Entendo que ali está Deus por seus efeitos que, como digo, produz na alma, pois daquele modo quer o Senhor dar-se a sentir" (Vida 27, 4).

O inquisidor Fernando de Valdés combateu a "espiritualidade afetiva" e publicou o índice de livros proibidos (1559), sobretudo romances, alguns da preferência de Teresa: "Quando se tiraram do público muitos livros em língua vulgar, para que não fossem lidos, senti muito, porque me recreava lendo alguns, e já não o podia fazer por o permitirem apenas em latim. Disse-me o Senhor: "Não tenhas pena, eu te darei livro vivo" (Vida, 26, 6).

Jerônimo de São José conta que as monjas estranhavam Teresa: "Por que Teresa se mete com essas invencionices? Para que esses extremos e novidades, tanta oração e contemplação, ficar ali às escondidas nos desvãos e rincões da casa?".

Houve um momento em que ninguém queria confessar Teresa: "Temia que viesse a não haver quem me quisesse confessar, pois todos fugiam de mim. Não fazia senão chorar" (Vida 28, 14). "Fartas afrontas e trabalhos passei em dizê-lo, e fartos temores e fartas perseguições. Tão certo lhes parecia que eu tinha demônio que algumas pessoas me queriam exorcizar. Disto, a mim, pouco se me dava; mas sentia quando via que os confessores temiam confessar-me ou quando sabia que de mim lhes diziam alguma coisa" (Vida 29, 4). "Não entendo estes nossos medos: é demônio! É demônio! Quando podemos dizer: Deus! Deus!" (Vida 25, 22).

Diz são Paulo na 1a Carta aos Coríntios: "As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as mulheres falem na igreja" (14, 34-35).

Em 1970, o papa Paulo VI ousou discordar do Apóstolo e proclamar Teresa "doutora da Igreja". Militante da fé, reformadora e fundadora, ela não se calou na Igreja e lutou em prol da liberdade religiosa das contemplativas e se assumiu como mestra espiritual. Deixou-nos uma obra de alto valor espiritual e literário.

Para Teresa, vida ativa e contemplativa caminham juntas: "quando a alma está nesse estado nunca deixam de trabalhar, quase juntas, Marta e Maria; porque no que é atividade e parece exterior, opera o interior, e quando as obras ativas saem desta raiz, são admiráveis" (Meditações sobre os Cânticos 7, 3; cf. Exclamações 5, 2).

Ao transvivenciar, em 1582, aos 67 anos, Teresa havia fundado 17 mosteiros na Espanha. Numa Igreja marcada pelo academicismo da escolástica e a suspeita de que místicos eram insubordinados ao controle eclesiástico, Teresa abriu as portas de uma espiritualidade amorosa, interiorizada, alegre, que se alcança através da meditação, da renúncia a tudo que nos aliena e ao supérfluo, da confiança de que Deus nos ama apaixonada e incondicionalmente.

A grande revolução operada por Teresa na espiritualidade foi justamente inverter os pólos: não são os nossos méritos que nos tornam mais próximos de Deus, e sim nossa capacidade de nos fazer mais próximos de nossos semelhantes e nos abrir ao amor gratuito de Deus.

As monjas de Bananeiras mantêm uma escola gratuita para 181 alunos, crianças, jovens e adultos. Nada cobram. A prefeitura ajuda pouco. As professoras ganham um salário irrisório. Liguei para o governador Cássio Cunha Lima, da Paraíba. Prometeu-me melhorias. Tomara.

Frei Betto é escritor, autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.